Funk: um grito de ousadia e liberdade
A exposição Funk: um grito de ousadia e liberdade visa contextualizar e celebrar a importância do funk brasileiro na história da cultura do Rio de Janeiro e no restante do país, por meio de 900 obras de mais de 100 artistas, a maioria deles ligados às comunidades onde se produz, se toca e se dança o funk, que se manifestam em pinturas, desenhos, esculturas, objetos, fotos, instalações e vídeos. Alguns aspectos musicais e culturais do Brazilian Funk, como subgêneros, localização e alguns problemas da pesquisa desta SST podem ser melhor conhecidos em outro artigo deste blog.
Texto e fotos: Leo Vidigal
Para entrar na exposição “Funk: um grito de ousadia e liberdade”, a primeira ação é entrar em uma enorme, mas rápida fila que leva a um espaçoso elevador. Durante a espera na fila, podemos apreciar um paredão de caixas de cor branca passivas, como pode ser visto na imagem acima, com a inscrição “funk” gravada acima delas no mesmo formato de letra usado pela equipe de som Furacão 2000, uma das mais importantes e antigas da cena soul music e funk (Furacão 2000, 2014), uma homenagem do time de curadores da exposição (ver abaixo) e um sinal pesado do que está por vir.
Por meio do elevador, subimos até o andar da mostra no MAR – Museu de Arte do Rio (Rio Art Museum), um antigo terminal rodoviário que foi transformado em museu pela Prefeitura do Rio de Janeiro e desde janeiro de 2021 é gerido pela Organização dos Estados Íbero-americanos (OEI). Trata-se de um palacete dos tempos do império ligado a um enorme prédio modernista localizado em plena Praça Mauá, um espaço de grande importância simbólica para a própria exposição.
Na sala logo após o elevador nos deparamos com duas enormes projeções, do lado direito exibindo o filme “Nossa Escola de Samba”, documentário de Manuel Horácio Giménez de 1968, que mostra um desfile da escola de samba Unidos de Vila Isabel, com o mestre-sala e a porta-bandeira, crianças e passistas dançando de forma entusiasmada. Do lado esquerdo podemos ver um vídeo de um grupo de adolescentes nos dias atuais fazendo o “passinho”, principal estilo de dança do funk brasileiro. Quem conhece um pouco da história do samba sabe que esta manifestação da população negra começou a se fazer notar a partir de gêneros musicais como o lundu, que foi apresentado aos brasileiros pouco depois da abolição oficial da escravidão no Império do Brasil, decretada apenas em 1888.
Este país foi o último do circuito escravocrata do Novo Mundo a fazer isso, dispersando os recém-libertados pelas periferias das grandes cidades, onde suas práticas religiosas e musicais foram desde então sistematicamente perseguidas. A própria localização da exposição na Praça Mauá é bastante significativa. Ela era conhecida nos tempos coloniais e do Império do Brasil como Praça da Prainha (Little Beach Square) e ficava próximo do Cais do Valongo, porto onde chegavam a maioria dos africanos escravizados, recentemente escavado e resgatado historicamente. As projeções demonstram a semelhança entre os passos do samba e do funk e a disposição das duas projeções, uma em frente à outra, deixa claras as similaridades coreográficas e sugere proximidades históricas. A conclusão é de que o funk sofre do mesmo preconceito e perseguição que o samba sofreu no Brasil no início de sua trajetória, devido ao racismo estrutural e à segregação criminosa ainda presente neste país.
Para continuar na exposição, é preciso passar por um corredor pixado por alguns representantes do funk nas comunidades do Rio, estabelecendo mais uma conexão, dessa vez com a cultura hip-hop. A ideia do corredor também é promover uma imersão na cultura do funk, como se nós estivéssemos entrando em um baile de favela. Em uma das pixações do corredor, lemos o nome de uma das maiores cantoras brasileiras, Elza Soares, que muitas vezes fundiu o samba e a soul music, e da dançarina e ativista do funk Taísa Machado, uma das curadoras da mostra. Segundo Taísa, “o funk é o retrato das periferias urbanas do país. Ele é jovem, ousado e marginalizado. É o palco onde nossas vozes são ouvidas, onde nosso corpo é visto. É onde podemos mostrar nosso talento, ganhar dinheiro e realizar nossos sonhos. O funk é uma fábrica de sonhos”, afirma ela (Paulo, 2023) .
Quando saímos do corredor entramos em um espaço com animações de Biarritzzz a partir das colagens da artista visual Gê Viana, que vieram diretamente do Maranhão para o museu. Essa conexão com o Maranhão não é casual e está sendo investigada também nas pesquisas realizadas no âmbito do SST (ver texto de Ramusyo Brasil neste blog).
As obras de Gê Viana foram realizadas a partir desenhos do francês Jean-Baptiste Debret, que a partir de 1816 retratou de forma realista a então capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, o Rio de Janeiro. O Rio era a capital porque, entre 1808 e 1822 o reino lusitano foi sediado no Brasil, pois toda a família real portuguesa, a corte, oficiais militares e todos os burocratas fugiram das campanhas militares de Napoleão Bonaparte para a então colônia, um caso único na história mundial (Starling and Schwarcz, 2018). Suas colagens e desenhos atualizam e mesclam elementos do Rio antigo, do Rio contemporâneo e também do Maranhão, como os enormes chapéus usados pelos caboclos de pena do Boi do Maracanã (e outros grupos de bumba-meu-boi) e as radiolas – sound systems deste estado da Região Nordeste do Brasil (leia bibliografia sobre as radiolas).
A exposição está dividida em duas partes, na primeira delas os curadores e curadoras traçaram as origens dessa cultura nos “Bailes Black”, eventos onde o que predominava era a soul music, realizados nos anos 1970 e 1980. Eles foram provavelmente a primeira manifestação organizada da cultura sound system no país, com a formação de enormes paredões de caixas de equipes de som como a Furacão 2000 (Rio de Janeiro), Zimbabwe (São Paulo) e Soul James (Belo Horizonte) (Laura, 2023), além de Brasília e outras grandes cidades brasileiras. A moçada das periferias dançava nesses bailes ao som de James Brown, Aretha Franklin, Sly and the Family Stone, Manu Dibango, além dos artistas locais, como Banda Black Rio, Tim Maia, Toni Tornado, Cassiano, Gerson “King” Combo, Sandra de Sá, entre muitos outros (Travae, 2021). Foram nesses bailes, como o Chick Show em São Paulo, onde aconteceram os primeiros shows brasileiros de alguns dos principais artistas de soul music, como James Brown, e os primeiros shows internacionais de hip-hop no Brasil, como o do trio norte-americano Whodini, que este autor presenciou em 1988.
A curadoria estabelece um paralelo entre a emergência de tais bailes nos anos 1970 e 1980 com o aparecimento das primeiras entidades e grupos que promoveram a conciência racial no país, como o Movimento Negro Unificado (MNU), em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte (Cardoso, 2002), e os grupos Olodum e Ilê Ayê, na Bahia, movimentos perseguidos pela ditadura civil-militar (1964-1985). Esta ligação é estabelecida por fotos históricas de Januário Garcia, que retratam intelectuais e ativistas negros dessa época, como Lélia Gonzalez e Abdias do Nascimento. Este “núcleo”, como é chamado cada segmento, é a seara de Dom Filó, engenheiro civil, documentarista, produtor cultural, criador da equipe de som Soul Grand Prix e também um dos curadores da exposição. Ele cita o conceito africano de “sankofa” como sua inspiração, segundo ele um modo peculiar de “olhar o passado para ressignificar o futuro” (OEI Brasil, 2023).
Nessa área vemos muitas fotos da época, coloridas e em preto e branco, retratando as pessoas e as quadras de escola de samba e clubes de bairro, onde eram realizados os Bailes Black e ainda são realizados alguns dos bailes funk, além de uma profusão de capas de discos dos diversos artistas tocados nas pick-ups dos DJs daquele tempo. Alguns totens estrategicamente posicionados permitiam que as pessoas ouvissem uma playlist com os maiores sucessos dos bailes. Era comum durante a exposição ver pessoas dançando com os fones de ouvido, ao mesmo tempo que apreciavam as obras de arte.
Os elegantes dançarinos dos bailes de soul music aparecem em obras que retratam aquela época, como esta pintura recente da artista Maria de Lourdes Santiago.
A segunda parte da exposição celebra a vitalidade, a visualidade e a sonoridade das diversas manifestações do funk, com ênfase nas favelas cariocas. Mas a curadoria também acena para outros lugares do imenso Brasil e a outros subgêneros, como as batalhas entre grupos de dançarinos de brega funk de Recife, no estado de Pernambuco, retratados no vídeo “Swinguerra”, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca.
Alguns núcleos se destacam nessa segunda parte, como a instalação “Relíquia das Relíquias” da artista Thaís Iroko, nascida e criada no morro do Chapadão, em Costa Barros, na zona norte carioca. Trata-se de uma homenagem ao Baile do Egito (@bailedoegitoofc), que, segundo Thaís “é um baile da minha comunidade e é a obra que eu trago para essa exposição. […] Eu já queria cruzar essa arquitetura egípcia que está nos museus, nas relíquias espalhadas pelo mundo, com a minha pesquisa no funk”, conta a artista (Abdala, 2023). O tema do Egito também aparece nas pinturas do artista Juan Calvet.
Em termos de tecnologia, algumas fotos mostram os paradões de caixas usados nos bailes e estes não parecem muito diferentes das caixas passivas usadas nos sound systems jamaicanos antigos ou nas radiola maranhenses, embora infelizmente não mostre os equipamentos de sonorização utilizados pelas equipes. As caixas de som também aparecem em muitas das obras expostas, como mas pinturas e desenhos de Gê Vianna, Blecaute, Thaís Iroko, Guilherme Kid, Herbert e Bruno Lyfe (ver perfis dos artistas abaixo).
Segundo os textos da equipe de curadoria, a partir dos anos 1990 e 2000 os bailes deixaram de acontecer apenas nos clubes e quadras de escola de samba e foram para as ruas, os chamados bailes de favela, com enormes palcos montados em pontos mais abertos das comunidades, para que os cantores, cantoras, MCs e Djs pudesse mostrar as suas músicas. Toda um meio de vida foi criado a partir desses bailes, uma economia da cultura que nunca dependeu de gravadoras e de lojas de discos ou CDs (Paulo, 2023). A fotografia também se destaca mostrando cenas dos bailes atuais, com fotos de Melissa Oliveira, Fotogracria, Vincent Rosenblatt, entre muitos outros. Núcleos dedicados ao protagonismo Lgbtqia+ na cultura funk, ao empoderamento feminino, aos dançarinos, ao times de futebol amador da periferia e outros, tornaram a exposição mais abrangente e inclusiva.
A exposição “Funk: um grito de ousadia e liberdade” situa o movimento funk na cultura sound system que se desenvolveu no Brasil a partir dos bailes de soul music e é um poderoso antídoto contra o forte veneno do genocídio e do epistemicídio de cunho racista praticados contra a população negra no Brasil. Também é uma boa oportunidade para que, como diz o doutor em filosofia Bruno Muniz, muitas pessoas comecem a enxergar e ouvir o funk “como arte e apenas como arte, sem a necessidade de justificativas adicionais”, para se obter uma “cidadania plena” e como base para a construção de “comunidades afetivas” (Muniz, 2015, 2016) e, por que não, comunidades sônicas. É uma introdução quase perfeita para o estudo do funk brasileiro como SST.
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Leonardo Vidigal é professor de Estudos de Cinema na Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. Ele também é fundador do grupo de pesquisa Sound System Outernational e membro da equipe Sonic Street Technologies e da equipe Deskareggae Sound System.
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Informações sobre a exposição
FUNK: UM GRITO DE OUSADIA E LIBERDADE
Museu de Arte do Rio, Praça Mauá, Rio de Janeiro, Brasil
Período da exposição: até o final de julho de 2024.
A curadoria ficou a cargo de Marcelo Campos (@marcelocampos7825), Dom Filó (@dom_filo) e Taísa Machado (@afrofunkrio), com assistência de curadoria de Amanda Rezende (@amandinharezz) , Jean Carlos Azuos (@umcuradorjovem) , Gabriel Moreno, Thayná Trindade (@trinthay), Thiago Fernandes, Waleska Oliveira (@iamwaleska), consultoria de Deize Tigrona, Celly IDD, Tamiris Coutinho, Glau Tavares, Sir Dema, GG Albuquerque, Marcelo B Groove, Leo Moraes, e Zulu TR. A expografia ficou a cargo dos arquitetos do Estúdio Gru.a. @grua_grupodearquitetos. Luz: Diana Joels @dijoels e Luana Alves. Cenotecnia: FR cenografia @frcenografia.
Perfis dos artistas citados neste texto
- Januário Garcia – @januariogarciaoficial
- Juan Calvet – @CddlRylrXCB
- Gê Vianna – @indiiloru
- Herbert – @artedeft
- Guilherme Kid – @guilherme_kid
- Fotogracia – @afotogracria
- Bárbara Wagner – @barbarawagner
- Bruno Lyfe – @bruno.lyfe
- Melissa Oliveira – @melisssadeoliveira
- Manuela Navas – @navas_manuela
- Maria de Lourdes Santiago – @0mmlu
- Emerson Rocha – @de.saturno
- Thiago Ortiz – @ortizth
- Thaís Iroko – @princesinhaperiferica
- Blecaute – @6lecaute
- Deize Tigrona – @deizetigrona
- Novíssimo Edgar – @novissimoedgar
Mais links
- Trecho de Swinguerra, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca: https://vimeo.com/414733279
- Nossa Escola de Samba (documentário com legendas em inglês): https://vimeo.com/245369417
- Vídeo oficial de inauguração: https://youtu.be/-qV7vRsftVk?si=qcV2w3DOQjlTtha1
- Tour Virtual oficial: https://youtu.be/LcfyxXyUnpE?si=ahnAI3Ipcx2kAImK
- Reportagem do Canal Curta!: https://youtu.be/ajhKj1eqDPY?si=v8D62UU58VBZSjYh
- Vídeo mais abrangente sobre a exposição: https://youtu.be/L4ZuOflq-Mc?si=oZYD2j2WHs5cE6Bz.
- Veja mais fotos da exposição em https://agenciabrasil.ebc.com.br/search?term=funk.
Referências
[1] Abdala, Vitor. Funk vira tema de exposição em museu carioca. Agência Brasil. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-09/funk-vira-tema-de-exposicao-em-museu-carioca. Acesso em 02/11/2023.
[2] Cardoso, Marcos Antônio. Movimento Negro em Belo Horizonte: 1978-1998. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2002.
[3] Furacão 2000 – Funk de Verdade. Canal Furacão 2000. 22 de dezembro de 2014. Disponível em: https://youtu.be/Gn44q-NkP2E?si=l1jr5Hwj_jacqsuj.Acesso em 02/01/2024.
[4] Laura, Brenda. As mulheres do soul dançam muito. Revista BDMG Cultural. No 11, 30 de setembro de 2023. Disponível em: https://bdmgcultural.mg.gov.br/artigos/as-mulheres-do-soul-dancam-muito/. Acesso em 10/01/2024.
[5] Muniz, Bruno Barbosa. Quem precisa da cultura? O capital existencial do funk e a conveniência da cultura. Sociologia & Antropologia (02) 02. p. 447-467, Rio de Janeiro: UFRJ, 2016
[6] Muniz, Bruno Barbosa. An affective and embodied push to Bourdieu’s dispositional model: Funk’s cultural practices in Rio de Janeiro. Tese de doutorado, London School of Economics and Political Science. London: LSE, 2015 Disponível em http://etheses.lse.ac.uk/3384/. Acesso em 01/25/2024.
[7] Organização dos Estados Ibero-Americanos – Brasil. FUNK: um grito de ousadia e liberdade. Canal OEI Brasil. 11 de outubro de 2023. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-qV7vRsftVk. Acesso em 02/01/2024 .
[8] Paulo, Andrezza. A importância do funk na cultura e economia periférica. Maré de Notícias. Maio de 2023. Disponível em: https://mareonline.com.br/a-importancia-do-funk-na-cultura-e-economia-periferica/. Acesso em 10/12/2023.
[9] Starling, Heloisa M.; Schwarcz, Lilia M. Brazil: a biography. London: Penguin UK, 2018.
[10] Travae, Marques. The story of Cassiano, the forgotten genius and icon of black Brazilian Soul music. Black Brazil Today blog. Disponível em https://blackbraziltoday.com/the-story-of-cassiano-the-forgotten-genius-and-icon-of-black-brazilian-soul-music/. Acesso em 01/20/2024.