A Tecnologia Musical da Amazônia Urbana
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Estamos particularmente interessados nos aparelhos móveis usados para tocar música gravada. Este ângulo especificamente tecnológico do projeto SST atravessa os gêneros musicais e geografias que mais frequentemente definem a pesquisa sobre cultura popular. Ele nos permite explorar como diferentes tecnologias estão sendo implantadas para construir comunidades e solidariedades em diferentes culturas e cenas musicais ao redor do mundo. Uma das mais literalmente espetaculares da SST são as aparelhagens de Belém na Amazônia brasileira, como explora o blogueiro desta semana.
Por Natalia Figueredo
Imagens de Bruna Brandão
Faz alguns anos que moro longe de Belém, em cada volta pra casa sempre sinto um certo gosto de nostalgia misturada com felicidade ao escutar – desde o decimo andar do apartamento do meus pais – os carros de som que passam pelas ruas anunciando as festas de aparelhagem. Uma lenda urbana que corre por Belém é que o limite máximo do som em decibéis no Pará é mais alto que a média brasileira [1]. Um bom exemplo dessa cultura do som alto são as festas – de aparelhagem – anunciadas por esses carros com sons automotivos potentes.
As festas de aparelhagem são um fenômeno cultural tradicional da cidade de Belém, na Amazônia brasileira, que se irradia por todo o estado do Pará. As aparelhagens são grandes estruturas sonoras e de iluminação, sendo o DJ a atração principal. Entretanto, como chama a atenção a pesquisadora Lydia Barros (2015), o determinante para o sucesso das aparelhagens são as novidades tecnológicas apresentadas. A qualidade de uma aparelhagem é mensurada pela sua capacidade de oferecer a melhor experiência em termos de luz, som e espetáculo midiático (Bahia, 2015).
Esse fim de ano (dezembro de 2022), voltarei pra casa mais uma vez. Mesmo faltando meses, eu já tenho programado uma série de festas para ir. Uma delas é a aparelhagem do momento em Belém, o crocodilo. Assim como o nome sugere, a cabine onde fica o DJ – ou nave como é popularmente conhecido em Belém – tem formato de crocodilo. A estrutura está toda revestida de LEDs, tem show de pirotecnia e o crocodilo se mexe.
A aparelhagem Crocodilo surgiu no início dos anos 2000. Inicialmente, era uma aparelhagem pequena que tocava basicamente nas festas do bairro do Jurunas em Belém, sendo considerada uma aparelhagem de bairro. Com sucessos musicais como o hit “Faz a Boquinha do Animal” o projeto começou a crescer . Essa música foi produzida pelo MC Dourado [2], cantor e compositor, junto com a DJ Meury [3]. O sucesso também é atribuído ao fato de ter sido gravado pelo estúdio KondZilla, que por um lado, é um dos responsáveis pela difusão massiva do funk e hoje em dia, tem o sétimo maior canal de música do mundo no YouTube. A letra fala do animal crocodilo, convidando as pessoas a dançarem abrindo e fechando as mãos como se fosse a boca do animal, o refrão diz “faz a boquinha do animal”. O sucesso da música gerou um maior interesse pelas festas da aparelhagem. Esse crescimento permitiu que a equipe de Dj’s e produtores investissem em uma estrutura maior, o que resultou na expansão do projeto.
A estrutura das aparelhagens, normalmente é feita em madeira, aço e fórmica, luzes de LED e TVs. Podendo variar de tamanho – pequeno, médio e grande porte (Maia, 2012). Segundo João do Som [4], uma das pessoas que desenha e constrói aparelhagens em Belém, o tamanho de uma aparelhagem depende do poder aquisitivo da pessoa que investe na estrutura. Ou seja, em Belém as aparelhagens são empresas privadas que possuem equipamentos sonoros, luminosos e cenográficos para animar eventos.
No caso do Crocodilo, houve um processo de evolução gradual dessa estrutura tecnológica, indicando principalmente pela mudança de nomes da aparelhagem. Em outras palavras, cada vez que a tecnologia ficava mais moderna, o nome ia mudando. Começou como “Incrível Crocodilo”, passou para “Gigante Crocodilo” e atualmente a equipe se apresenta como “Surreal Crocodilo”, colocando as vezes a palavra “prime” no final – “Surreal Crocodilo Prime”. A estrutura é atualmente composta por equipamentos de som e de painéis de LED para montar eventos de 2 mil a 50 mil pessoas
João do Som foi quem executou o projeto do Crocodilo, e me contou que para os grandes eventos foi pensada uma estrutura que é composta por todo o corpo do animal (crocodilo). O Gigante Crocodilo tem 8 metros da cabeça ao rabo e está todo coberto de placas de LED de alta resolução. Já para as festas menores com só alguns Djs, foi pensado uma estrutura que é composta apenas pela cabeça do crocodilo. João ressaltou que essas estruturas costumam ser modulares para se adaptar de acordo com o ambiente e facilitar o transporte.
Junior Almeidavi [5], DJ envolvido na cena do tecnobrega, me contou que nos últimos anos as aparelhagens ganharam proporções muito grandes e que as casas de show na capital – como ele se refere a Belém – não acompanharam a evolução das aparelhagens em termos de tamanho. Almeida explica que devido a dificulta em montar de uma estrutura completa, as aparelhagens tem feito eventos menores em Belém.
O músico também explicou que outro problema enfrentado pelas aparelhagens é que as pessoas, principalmente as que não conhecem a cena, associam o tamanho da aparelhagem a poluição sonora e se assustam. Muitas vezes, antes mesmo da festa começar, já tem denuncia. Na nossa conversa ele lembrou de uma vez que o caminhão que transportava a aparelhagem que ele iria tocar foi parado pela policia ainda na estrada a caminho do local da festa.
Essa dinâmica reforça o protagonismo do Dj nas festas em Belém, já que na maioria das vezes não é possível montar grandes estruturas na capital. Junior explicou que, muitas vezes o DJ toca sozinho, mas com o nome da aparelhagem. Ou seja, ele adiciona o nome da aparelhagem ao seu para identificar que a festa é daquela equipe e não daquele DJ. Nesse formato menor, o DJ pode tocar 4 ou 5 vezes num dia, ganhando até mais que se estivesse com a aparelhagem completa. Isso fez com que a cena mudasse, tendo estruturas para se apresentar em diversos formatos. Como no caso do crocodilo que tem estruturas (naves e nomes) para diversos tamanhos de festa.
As aparelhagens são eventos itinerantes que também viajam para o interior do estado, e são nessas cidades que elas costumam tocar completas. Keila [6] que é cantora de tecnobrega a mais de 10 anos e já viveu no interior do estado me explicou que quando as aparelhagens vão para o interior é um acontecimento. As estruturas são muito grandes e a festa começa mais cedo e termina mais tarde. Normalmente saem caravanas organizadas pelos fãs das aparelhagens de Belém para acompanhar as festas no interior. As grandes aparelhagens também dão respostas a uma necessidade de eventos culturais nas cidades menores. O que faz com que a festa seja um evento que mobiliza toda uma cidade.
Essas grandes estruturas modificam-se constantemente e a fala de seus proprietários, como o Cidinho do Crocodilo, apresenta um forte discurso que exalta o papel da inovação tecnológica para a cena das aparelhagens. No documento que explica de maneira breve a história do Crocodilo por exemplo, a equipe se apresenta com a frase “Quem se atreve, triunfa”. As aparelhagens sempre estão em busca de novas tecnologias para apresentar nas festas. João do Som explicou que normalmente a cada 2 anos a estrutura fica obsoleta e precisa ser feita uma nova.
Junior almeida fala que as pessoas também vão a aparelhagem para ver as novidades tecnológicas. O que em certa medida explica o porque o Crocodilo é a aparelhagem em alta no momento. Junior falou que desde sua origem, as mais modernas tecnologias estão na estrutura das aparelhagens para que as pessoas que fossem as festas pudessem ver uma coisa inédita. Para Junior Almeida a aparelhagem representa o futuro.
Nessas festas existe uma organicidade entre os participantes, a música e o espaço. Os DJs estimulam a reações do público com falas, vinhetas na mixagem das músicas e efeitos pirotécnicos como explosão de confetes e fogos de artifício. Além disso, os DJs normalmente citam nomes de pessoas presentes nas festas. Almeida comenta que todo mundo que está lá quer escutar o seu nome ser anunciado. Ele fala, “você imagina a pessoa que trabalha o mês todo e ganha um salário mínimo e vai lá na aparelhagem e é anunciado como uma pessoa importante. Faz com que nós nos sintamos donos da festa, parte da aparelhagem”.
Durante o evento é gravada a performance dos DJs e disponibilizada a gravação em CD no final da festa. Muitas pessoas compram as gravações que tem seus nomes e dão de presente para amigos. A comercialização desses Cd’s explica um pouco sobre as origens das festas de aparelhagem. Essas festas nascem da popularização do ritmo Tecnobrega no final dos anos 90 começos dos 2000. As aparelhagens são parte do circuito de produção do tecnobrega como demonstra Lemos e Castro (2008, p. 22):
Simplificadamente, podemos dizer que o mercado do tecnobrega funciona de acordo com o seguinte ciclo: 1) os artistas gravam em estúdios – próprios ou de terceiros; 2) as melhores produções são levadas a reprodutores de larga escala e camelôs; 3) ambulantes vendem os CDs a preços compatíveis com a realidade local e os divulgam; 4) DJs tocam nas festas; 5) artistas são contratados para shows; 6) nos shows, CDs e DVDs são gravados e vendidos; 7) bandas, músicas e aparelhagens fazem sucesso e realimentam o ciclo.
O tecnobrega tocado em alto e bom som é parte da paisagem de Belém [7]. Desde de 2013, a lei estadual 7.708/13 declara que, esse que é o ritmo essencial das aparelhagens, é patrimônio cultural e artístico do Pará (Marques Fernandes, 2020). O tecnobrega é uma música eletrônica, dançante, com uma batida sintética feita em estúdio, onde produtores utilizam computadores e softwares para fazer mixagens, samples e o loops (Rodrigo Moreira Magalhães, 2017). Barros denominou o tecnobrega como “musicalidade de fronteira” (2015, p. 136), pois dada a posição geográfica de Belém tem muita influencia dos ritmos caribenhos.
Apesar das aparelhagens terem papel fundamental na divulgação do tecnobrega, muitas aparelhagens tocam ritmos variados principalmente as músicas que estão fazendo sucesso no Brasil e no mundo. O Crocodilo por exemplo tem uma vinheta que fala que é o “animal toca tudo do Pará”. Nesse caso, os Djs costumam manter a base rítmica do tecnobrega e os mesmos andamentos, e vão passando de uma música a outra e por vários ritmos musicais atuando principalmente nas mixagens. Essa maneira de tocar é que o público chama de “pressão”. Um dos principais DJ’s do Crocodilo por exemplo se denomina Dinho Pressão.
Keila também me explicou que o Tecnobrega nunca conseguiu se massificar e deixar de ser considerado como música alternativa. Ou seja, a nível nacional, o ritmo é curtido pela cena cult brasileira, aquela galera que gosta de entender sobre os diferentes Brasils. Mesmo assim o ritmo nunca conseguiu se massificar e deixar de ser considerado como música alternativa. Ela comenta que mesmo depois de 10 anos de carreira – em entrevistas para jornais a nível nacional – ainda tem que explicar o que é o tecnobrega.
Por outro lado, Keila falou que com a ascensão do Funk Carioca outros estilos periféricos vêm sendo valorizados e um estilo vem puxando o outro. Por isso esse é um bom momento para o tecnobrega. Apesar de na grande maioria das vezes que descritos, o tecnobrega e as aparelhagens, serem considerados como fenômeno cultural que acontece – apenas – na periferia, essas festas estão por todo Brasil.
Um bom exemplo disso é que esse ano, Keila juntamente com os DJs do Crocodilo se apresentaram num dos maiores festivais de música do Brasil, O Rock in Rio e a estrutura levada foi construída por João do som. Além disso, a nave do Crocodilo também foi utilizada pela cantora Anitta em uma das suas produções musicais [8]. Mesmo que a cantora não tenha cantando um tecnobrega, ou feito sua música com um DJ local, o uso da estrutura do Crocodilo mostra o êxito e a potencia das aparelhagens.
O ciclo desenvolvido pela cadeia produtiva ao redor das aparelhagens, como bem lembrado por Rodrigo Moreira Magalhães (2017), é referência mundial de produção de bens culturais, sem falar na autonomia em relação à indústria fonográfica. Esse movimento cultural permite a formação de mercados culturais mais inclusivos, ao estar dotado de tecnologias emergentes permitindo que os sujeitos periféricos criem seus próprios mecanismos de produção, distribuição e circulação cultural.
Para esse projeto eu organizei uma playlist Spotify com que todo mundo possa escutar o som do Pará.
Natalia Figueredo é arquiteta e urbanista (Escola da Cidade – São Paulo), teórica cultural (Goldsmiths University of London), natural de Belém na Amazônia brasileira. Atualmente está fazendo doutorado em cultura e sociedade na Universidade de Barcelona.
Bruna Brandão é Comunicação Social (Universidade Federal de Minas Gerais), fotografa (Cambridge School of Art) e natural de Belo Horizonte Minas Gerais. Atualmente é fotógrafa da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais e integrante do fotocoletivo Flanares.
Notas
[1] Chamo de lenda urbana porque nunca encontrei uma informação para confirmar a veracidade dessa história.
[2] MC dourado é cantor e compositor de São Paulo que fica no sudeste do Brasil. Atualmente vive em Belém e produz muitas músicas em parceria com o Crocodilo.
[3] Dj Meury é reconhecida como a primeira e mais importante mulher da cena do Tecnobrega.
[4] A revista Vice (Pinheiro & Agência PLANO, 2017) fez uma reportagem com a história do João do Som que hoje é uma das pessoas mais imporantes no desenvolvimento e execução dos projetos das aparelhagens.
[5] O Junior Almeida além de DJ está envolvido em um trabalho de registro sobre a origem das aparelhagens. Isso porque seu pai foi uma das pessoas que começou a construção das primeiras aparelhagens no Pará, mais conhecidas como Sonoros. Por conta disso ele participou da gravação de um documentário sobre o inicio das aparelhagens feito pelo norte-americano Darien. Junior também tem um projeto chamado @sonoroparaense.
[6] Para conhecer um pouco mais do trabalho da Keila aqui está o link do seu Spotify.
[7] É possível encontrar mais informação sobre o tecnobrega em Belém no documentário Brega SA (Vladimir Cunha & Gustavo Godinho, 2009)
[8] Link para o clip No chão Novinha de Anitta com Preto Sampaio: https://youtu.be/ls74YCwYB4k
Bibliografia
Bahia, M. (2015). The Periphery Rises: Technology and Cultural Legitimization in Belém’s Tecnobrega. Journal of Lusophone Studies, 13. https://doi.org/10.21471/jls.v13i0.3
Barros, L. (2015). A validação do Tecnobrega no Contexto dos Novos Processos de Circulação Cultural. Novos Olhares : Revista de Estudos Sobre Práticas de Recepção a Produtos Mediáticos, 4(1), 135. https://doi.org/10.11606/issn.2238-7714.no.2015.102230
Lamen, D. (2022). HOJE ESTAMOS AQUI – official trailer (English subtitles) – YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=hHsK-Xeyapk
Lemos, R., Castro, O., Favareto, A. da S., Magalhães, R., Abramovay, R., Tosta, A., Ignácio, E., Simas, M., & Menezes, M. (2008). Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música. Aeroplano Editora. http://hdl.handle.net/10438/2653
Maia, F. (2012). As Novas Aparelhagens Sônicas Que Fazem Belém Vibrar. MOTHERBOARD Tech by Vice . https://www.vice.com/pt/article/4xnz8d/as-aparelhagens-sonicas-que-fazem-belem-vibrar
Marques Fernandes, M. B. (2020). O Pará que «Treme»: Compreendendo o Tecnobrega como Património Cultural Imaterial. CEM (Porto, Portugal ), 11.
Pinheiro, R., & Agência PLANO. (2017). Conheça João do Som, o arquiteto de aparelhagens do Pará – VICE. Vice Brasil. https://www.vice.com/amp/pt/article/ywbxby/joao-do-som-aparelhagens-para
Rodrigo Moreira Magalhães. (2017). Experiências do lugar: uma etnografia de festas de aparelhagem nas periferias de Belém do Pará, focada em seus frequentadores. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).