Mapeando a Cultura do Sound System Brasileiro

O Brasil pode reivendicar umas das mais ricas e diversificadas cenas e culturas do SST do mundo. É sobre isso que os nossos projetos planejm pesquisar, em profundidade e em detalhe. Por isso, temos o prazer de publicar, como primeira amostra do que está vindo, esta entrevista com a Dani Pimenta, co-fundadora do coletivo Feminine Hi-Fi e também do site Mapa Sound System Brasil. Trabalhámos com as Feminine Hi Fi no ano passado durante o nosso evento online SSO # 7 e ficámos realmente impressionados com o profissionalismo, energia e empenho delas. Quando ouvimos falar do projeto Mapa, foi muito natural decidir convidá-las a se juntar ao nosso esforço para mapear a diáspora global das tecnologias do som de rua.

Versão em inglês

Pode nos falar um pouco sobre você e sobre a equipe do Sound System Mapa?

Olá! Eu sou Dani Pimenta, jornalista, seletora, produtora cultural e pesquisadora. Sou co-fundadora do projeto Feminine Hi-Fi, fundadora e editora do site brasileiro especializado em reggae Groovin Mood, e também criadora do projeto Mapa Sound System Brasil.  

 O projeto virou livro em 2019. Sou co-autora do livro em parceria com Natan Nascimento, que é designer, soundman fundador do Favela Sound System e seletor.  

Como e quando começou essa sua paixão pelos sound systems e pelas outras tecnologias de som de rua?

Eu sou muito conectada à música desde a infância. Cresci no centro de São Paulo, a maior cidade da América Latina, e tudo de caótico que isso significa lol, e desde muito criança fui influenciada pelas lojas de discos e fitas cassete que existiam no meu entorno, e também pela música que minha família consumia. Era basicamente música afro-brasileira (samba-reggae, samba, pagode e outras sonoridades) e música sertaneja de raiz.  

 Fui crescendo e passei a frequentar, na adolescência, os bailes de rap que aconteciam nos porões da cidade e também nas grandes pistas, além dos famosos bailes black que tomavam conta da cidade no final dos anos 90/começo dos anos 2000.

Esse interesse pela pista, pela rua, pela noite, pela música popular, pela música urbana, me levou a conhecer em 2006 o Java, festa produzida pelo Dubversão Sound System aqui em São Paulo. Na primeira vez em que entrei no Java e tive contato com a cultura sound system, foi como uma abdução. Nunca mais voltei dessa paixão, que só cresce a cada ano que passa.  

 

 

Feminine Hi Fi em Sao Paulo.

 

A gente sabe que o Brasil é uma espécie de mina de ouro de tecnologia de som da rua. Pode nos falar sobre os diferentes SSTs que tem no Brasil?

A história das aparelhagens brasileiras inspiradas na cultura jamaicana começou a ser traçada na década de 1970, no estado do Maranhão – que é chamado de Jamaica Brasileira, com as tradicionais radiolas – enormes paredes de caixas de som, com grandes times e foco especial no reggae roots. 

Um pouco antes, mas ecoando outras sonoridades, os “Sonoros Paraenses” / aparelhagens, que tiveram um boom a partir dos anos 1980, com o crescimento e popularização de ritmos como o Tecnobrega / Tecnomelody, patrimônio histórico daqui. No Brasil, também temos outros estilos de aparelhagem, como as paredes do funk (“paredões de funk”), o “trio elétrico” (muito ligado ao nosso carnaval), e os paredões automotivos: caixas acopladas ao porta-malas de um carro, ecoando um variedade de ritmos, como “piseiro” ou “bregafunk”. 

 Porém, outra forma de celebrar a cultura jamaicana no Brasil vem a partir do início do ano 2000, mais inspirada nos sistemas de som europeus. Começou então a trajetória das aparelhagens brasileiras com essa identidade – com pioneiros nesse estilo como Dubversão, Digitaldubs e outros.  

 

Selector Dexter Campbell at a Jurassic sound system session, São Paulo 2014. Photo por Dió Vieira.

 

Então são 2 os tipos de SST dedicados à música reggae no Brasil?

No Brasil, temos dois meios principais de amplificação de reggae: as radiolas e os sound systems. Acho que em ambos os casos, há inspirações diretas na cultura jamaicana e seu “modelo” – com seu desenvolvimento na Europa – e nas adaptações locais da cultura latina. Um pouco da nossa construção, que se mistura com a construção dessa cultura caribenha que admiramos e respeitamos, e com adaptações locais da cultura latina. 

 As radiolas se expandiram principalmente a partir dos anos 80 no Maranhão, trazendo a explosão local do reggae e resultando no apelido de “Jamaica Brasileira” que a cidade de São Luís, capital do Maranhão, ganhou definitivamente. Mas a história do reggae no Maranhão se inicia pela década de 70, e a versão mais difundida da chegada do reggae ao Brasil é a de que marinheiros que chegavam ao porto de São Luís deixavam discos trazidos da Jamaica.  

 O reggae se difundiu pela periferia da cidade e passou a conquistar adeptos por toda a cidade, experimentando essa explosão na década de 80. Há uma grande identidade da população com o reggae roots, e há inclusive um jeito próprio de dançar, chamado de “Reggae Agarradinho”, que foi declarado recentemente como Patrimônio Cultural Imaterial. As radiolas cresceram, se expandiram, e a paixão virou um grande negócio, uma potência econômica que movimenta grandes equipes profissionais sobretudo no Maranhão, mas também em outras partes do Brasil. Os imensos paredões de caixas impressionam.  

Já os sound systems experimentam sua expansão a partir do início dos anos 2000, reverberando um modelo que se aproxima mais ao que é difundido na Europa. As equipes se multiplicam ano a ano e uma espécie de “boom” ocorre a partir da primeira metade da década de 2010, fazendo com que a cena cresça exponencialmente.  

Segundo dados do Museu do Reggae, localizado no Maranhão, existem mais de duas centenas de radiolas em atividade atualmente. Nosso primeiro mapeamento levantou mais de 120 sound systems em 2019, mas hoje esse número já é bem maior.  

 

Feminine Hi-Fi + Ruído Rosa Sound System in Heliópolis (São Paulo, Brazil, 2019). Photo por Milena Camilotti.

 

De onde vem essa ideia do mapa e como se desenrolou no começo?

Quase duas décadas após o início desse movimento cultural e musical local mais voltado ao modelo sound system, expandido para os quatro cantos do país, um levantamento brasileiro básico e inicial sobre aparelhagem reggae foi realizado e transformado em livro em 2019: “Mapa Sound System Brasil” (Sound System Brazil Map), criado por mim, Daniella Pimenta, e meu amigo Natan Nascimento, designer gráfico, seletor, fundador e membro do Favela Sound System de Jundiaí, da Região Metropolitana de São Paulo. 

O livro inclui ilustrações de mais de 120 sound systems. O número de sistemas de reggae no país é ainda maior que o total do livro, que nada mais é do que um recorte de um momento – e continua crescendo, semana após semana: agora, temos mais de 200 radiolas, aproximadamente o mesmo número de Sistemas de Som, e outros tipos de sistemas que amplificam o Reggae Music no país. É uma imensidão em que começamos apenas a nadar na superfície. 

O livro é resultado do projeto Mapa Sound System Brasil online, projeto iniciado por mim em 2015 no blog Groovin Mood, que mantenho no ar desde 2008 e é especializado em reggae. Quando o Mapa começou, a ideia era visualizar a atuação das aparelhagens reggae em território nacional. 

Em 2018, nós – eu e Natan – nos reunimos para criar a publicação / livro / catálogo. O catálogo traz depoimentos de artistas locais e de nomes internacionais como Walshy Fire e Mad Professor. Conseguimos um incentivo financeiro público da Prefeitura Municipal de São Paulo – Secretaria de Cultura, para a produção do livro. 

O livro não tem a menor pretensão de ser um guia definitivo do sound system brasileiro, até porque esta é uma cultura em constante movimento e que não para de crescer. A ideia não é fechar a lista de sistemas do livro, até porque há muito mais sistemas do que os do catálogo. O foco é dar uma visão geral do movimento da cultura do sistema de som reggae no Brasil. Os autores queriam obter uma amostra – o mais precisa possível – do que está acontecendo no Brasil. Agora, o livro está se transformando em um website. 

 

Mapa Sound System Do Brasil (2019), capa de livro.

 

Você falou que a Câmara Municipal de São Paulo financiou o livro e isso é muito legal. O que você acha da opinião do pessoal do mundo acadêmico ou de contextos culturais mais altos do Brasil acham dos SST? São apreciados, protegidos, contestados, criminalizados…?

As manifestações populares e de rua são muito fortes no Brasil, mesmo com a precariedade de políticas públicas voltadas ao tema. Um exemplo claro disso é o funk, que mesmo sendo uma cultura constantemente atacada pela parte mais conservadora da sociedade, resistiu e resiste fortemente, alcançando lugares do mercado musical que antes pareciam inalcançáveis.  

As tecnologias sonoras de rua brasileiras, mesmo vivendo sob um governo sombrio como o atual, possuem uma capilaridade muito interessante nos ambientes fora da rua. Grupos de rap famosos mundialmente, como o caso dos Racionais MCs, são estudados também em ambiente acadêmico ou mais formal. O sound system acaba também atingindo lugares que antes pareciam inalcançáveis, como grandes palcos, festivais, bibliotecas renomadas, institutos culturais, casas noturnas que não são underground…

Pouco a pouco, creio que as barreiras são derrubadas, mas penso que sofremos um retrocesso bastante importante desde a posse do governo Bolsonaro e da ascensão de simpatizantes da extrema-direita por aqui. É um momento bastante movimentado no nosso país em relação à cultura de rua e isso pode acenar para uma perspectiva mais positiva, dependendo de como serão as próximas eleições por aqui.

Pode nos falar um pouco sobre o site Mapa Sound System Brasil website?  

Nosso projeto está se transformando em um site. Com um formulário aberto para inscrição de equipes e também para solteiros, selecionadores/selecionadores e demais trabalhadores da cultura, a ideia é que cada um possa contar sua própria história. 

O site é uma extensão mais completa do projeto, e tem como objetivo realizar um registro e preservação da memória da cultura do Reggae Sound System brasileiro, que em todas as regiões do país impacta na cultura local trazendo aspectos únicos e especiais. 

O lançamento da plataforma aconteceu em setembro passado, e ainda estamos ajustando algumas funcionalidades. No momento, conta com formulários para cadastro, área de consulta a artigos, entrevistas, matérias jornalísticas e outros materiais interessantes, área para consulta de cadastrados, e em breve terá o que nomeamos de “Reggae Analytics”, que são dados coletados a partir dos formulários, incluindo etnia, faixa etária, localização, entre outros. A ideia é que esses dados sejam atualizados a cada semestre.   

 

Radiolas in Maranhão. Photo by Dani Pimenta

 

Você acha que o site do Mapa pode suportar a cultura no Brasil? Como? E como foi o feedback na própria cena ?

Exceto pelas radiolas, que têm sido observadas ao longo das décadas, a cultura sound system brasileira praticamente não conta com registros. O Mapa é algo como um passo inicial para registro da memória da cultura sound system local, e penso que essa é a contribuição que podemos dar, é a forma de devolvermos à cultura tudo que ela nos tem dado de melhor nos últimos anos.  

Recentemente, outro livro voltado especificamente ao sound system foi lançado aqui em São Paulo, mais focado aqui em São Paulo mesmo, que é o “Sob Frequência” (“Under Frequency”), dos fotógrafos Miguel Salvatore e Melissa Sirks. É um compilado fotográfico maravilhoso, com registros históricos e que reúne 19 fotógrafos ao todo. Acreditamos que tanto o Mapa quanto o Sob Frequência podem estimular outros trabalhos de preservação e registro dessa memória.  

 

Como seletora das Feminine Hi Fi você viajou pela Europa duas vezes. Quais são suas impressões sobre a cena dos sound systems aqui (com certeza tem diferenças entre os países…) e quais são as diferenças com o Brasil (Ou São Paulo)?

Apesar da Feminine ter viajado à Europa por duas vezes, eu fui apenas na primeira vez (na segunda eu havia passado por uma recente cirurgia e não pude acompanhar, infelizmente).  

A minha principal sensação em relação à cena sound system europeia foi o nível de profissionalismo. Como você mesmo diz, claro que há a questão de diferenças entre primeiro e terceiro mundo, como sabemos, mas mesmo assim isso de fato me impressionou e me inspirou. O comprometimento do público foi outra coisa que me encantou, as pessoas sempre presentes, animadas, ficando até o fim voluntariamente para ajudar a recolher o lixo, por exemplo, tudo isso me trouxe reflexões positivas e me fez pensar o que podemos realizar para avançar como cena aqui, mesmo com todos os percalços sociais e econômicos que enfrentamos.  

 

Feminine Hi-Fi in Heliópolis, Laylah Arruda on the mic (São Paulo, Brazil, 2019). Photo por Milena Camilotti

 

O que você aprendeu pessoalmente enquanto dirigia o projeto do Mapa, desde o Groovin Mood até o site?

 Aprendi e aprendo muito, todos os dias. Aprendi sobre como as dimensões continentais do nosso país impactam em diferentes formas de fazer sound system, sobre como as pessoas amam o que fazem, apesar das dificuldades, e aprendi que tudo isso que fazemos é em nome de algo muito maior do que todos nós.  

Esse fervor que move a cultura sound system, essa resistência, essa herança que a Jamaica espalhou para o mundo todo e que criou raízes muito fortes no Brasil – vide o tamanho da nossa cena – é algo muito potente, muito transformador.  

 

Quais são os planos futuros de Mapa Sound System project? 

Nossa ideia é ir aperfeiçoando a plataforma, de modo que ela fique cada vez mais fácil de ser acessada, de receber cadastros, e queremos muito alcançar também a parte que não está exatamente conectada à internet e que não pode de forma alguma ficar de fora. Construtores, radioleiros, cantores, há um grande contingente que o mapeamento digital por si só talvez não alcance, então temos pensado muito a respeito de como superar esse impasse e alcançar também o fazer precioso dessas pessoas.  

E continuar trabalhando, sempre.  

Dani Pimenta é jornalista, produtora cultural, seletora e pesquisadora. Fundadora e editora do Groovin Mood, site que está no ar desde 2008 e é dedicado ao reggae e sound system, é co-autora do projeto Mapa Sound System Brasil. É uma das fundadoras do projeto Feminine Hi-Fi, e também embaixadora e membro do WME (Women’s Music Event) Awards, o primeiro prêmio brasileiro dedicado à mulher na indústria musical.

 

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