Explorando a Pesquisa sobre Aparelhagem
Mapear as pesquisas e documentações existentes sobre tecnologias sonoras de rua é um ponto de partida essencial para qualquer investigação mais aprofundada. Por esse motivo, o SST comprometeu-se a publicar bibliografias anotadas sobre as diversas cenas de sistemas de som ao redor do mundo. Essas bibliografias são cuidadosamente elaboradas por pesquisadores locais e incluem não apenas publicações acadêmicas, mas também filmes, canais de mídia social e arquivos digitais produzidos dentro das próprias cenas. Após a publicação de trabalhos sobre os sistemas de som reggae na Jamaica e no Reino Unido, os picós na Colômbia, as radiolas no Maranhão e o arquivo canadense de sistemas de som, as pesquisadoras do SST Brasil, Natalia Figueredo e Maria Luiza de Barros, relatam o estado da pesquisa sobre as aparelhagens, a tecnologia sonora de rua característica da Amazônia urbana.
Link para a bibliografia anotada de Aparelhagem
Por Natalia Figueredo e Maria Luiza de Barros
Para realizar a revisão literária Aparelhagem: The Music Technology of Urban Amazonia, foi utilizada a estrutura desenvolvida pelo SST, que divide os materiais sobre aparelhagem em quatro categorias: Fontes científicas; Recursos audiovisuais; Literatura cinzenta (publicações impressas e digitais); Canais de redes sociais.
No que diz respeito à pesquisa acadêmica, ainda são poucos os estudos ou projetos que se dedicam exclusivamente às aparelhagens. A maioria deles as examina como um elemento dentro do circuito do gênero musical tecnobrega. Entretanto, mesmo que o foco principal de alguns projetos seja a música, é possível observar que, em diferentes escalas, eles destacam o circuito de agentes e práticas culturais que compõem o que se entende como cultura de aparelhagem — um ecossistema cultural onde o gênero musical (tecnobrega) e o aparato sonoro (aparelhagem) estão interligados.
O tecnobrega, também conhecido como “música de aparelhagem”, é um gênero de música eletrônica altamente dançante que, assim como os sistemas de som preparado para tocá-lo, depende de apropriações tecnológicas para possibilitar a produção musical. Esses projetos acadêmicos, então, revelam a relação inseparável entre o gênero musical, o aparato sonoro e o território.
Embora esses projetos facilitem uma análise das aparelhagens a partir de diferentes perspectivas, incluindo a compreensão das festas e de seus frequentadores, eles também realçam a singularidade da geografia amazônica em relação com outras áreas do Brasil ou do mundo. Assim como, permitem a investigação dos elementos que constituem o ecossistema da aparelhagem. Com isso, é possível destacar três perspectivas principais: geográfica, geopolítica e social.
Show pirotécnico da Aparelhagem Super Pop no Estádio Mangueirão, Belém, 2023. Imagem © Natalia Figueredo
Uma Cultura Periférica
Um aspecto crucial para entender a dinâmica cultural da região é a suposta subalternidade da Amazônia em comparação com outras regiões do Brasil, como o Sul e o Sudeste. Isso faz com que a produção cultural das aparelhagens seja profundamente influenciada pela geografia e pelo contexto social amazônico, onde a música e a festa se tornam formas de afirmação cultural. No artigo Amazonian Sound Systems,Cyborg, Indians, and the Future of the Future, Darien Lamen analisa como as práticas musicais na Amazônia desafiam as narrativas de marginalidade, propondo novas formas de entender a modernidade e a cultura na região. Seu filme sobre a história de Milton Almeida e a aparelhagem Alvi Azul, o documentário Hoje estamos aqui também oferece uma visão sobre como o som e a música se articulam como meios de resistência cultural.
Essa condição de subalternidade também possibilitou conexões entre o território amazônico, a afrodiáspora e a globalização de diferentes maneiras. A cultura de aparelhagem incorpora um caráter cosmopolita, à medida que os agentes envolvidos nessa cena cultural se apropriam de tecnologias e tendências disponíveis no mercado mundial, transformando-as de acordo com a cultura local. Essa interação criativa entre tradições locais e influências globais ilustra a adaptabilidade e a inovação das comunidades na periferia do capitalismo.
Dois exemplos dessa conexão são: o trabalho etnográfico realizado por Rodrigo Moreira Magalhães em festas de aparelhagem que explora como essas festas funcionam em termos de sociabilidade, e uma economia que desafia as hierarquias tradicionais, criando conexões locais que dialogam com influências globais; e o estudo de Andrey Faro de Lima, que explora a relação entre a música caribenha e a música paraense, analisando aspectos geográficos e políticos do Brasil, como a história colonial da região, a atividade portuária no Norte e as dinâmicas de globalização que permitiram essa troca musical entre pessoas e objetos.
Sendo as aparelhagens aparatos tecnológicos que organizam eventos itinerantes de tecnobrega, o gênero musical é parte fundamental dessa prática cultural. O tecnobrega é a versão eletrônica do brega, que se consolidou desde a década de 1960 como uma música de “baixa qualidade”. Isto se deve ao fato de o gênero musical brega estar intrinsecamente ligado às classes populares e a contextos geográficos do interior e das periferias de várias partes do Brasil. Além disso, outros motivos como a padronização da produção musical pela indústria atualmente, ou a ênfase na imitação em vez da criatividade, podem contribuir para esta percepção. Herdeiros deste estigma, o tecnobrega e a cultura de aparelhagem, são frequentemente vistos como música pobre, de mau gosto ou simplista.
Isto contribui para um preconceito acadêmico e social em relação ao tema, relegando-a a um status de pouca relevância para investigação ou abordada de maneira predatória e exotizada. Portanto, entender o lugar das aparelhagens na cultura brasileira requer a análise de textos que discutem conceitos como “cultura popular”, “cultura de periferia” ou “música ruim” no país. Neste sentido, na revisão literária, foi essencial considerar trabalhos como o do professor Dr. Paulo Murilo Guerreiro do Amaral, Estigma e cosmopolitismo na constituição de uma música popular urbana de periferia: Etnografia da produção do tecnobrega em Belém do Pará.
É importante ressaltar que a historiografia brasileira já conta com diversas obras que abordam temas relacionados à cultura das periferias, como o livro Eu Não Sou Cachorro, Não de Paulo César Araújo. Esse trabalho, por exemplo, explora a música brega e os desafios enfrentados pelos artistas da periferia brasileira durante a ditadura militar, destacando como a cultura popular, muitas vezes marginalizada, se torna uma ferramenta de resistência e expressão das classes subalternizadas.
Embora historicamente estigmatizada, a cultura de aparelhagem representa formas resilientes e inovadoras de expressão cultural. Portanto, uma literatura acadêmica que destaca a rica trama de conexões sociais, geográficas, geopolíticas e culturais que modelam as práticas musicais na região nos permite entender a profundidade e a complexidade da cultura de aparelhagem no contexto amazônico.
O Aparato tecnológico
Assim, para entender a história da aparelhagem, além da bibliografia acadêmica, é imprescindível ouvir as pessoas envolvidas na cena, como DJs, construtores e proprietários de aparelhagem. Nesse contexto, acessar registros audiovisuais, como podcasts, documentários, reportagens, redes sociais e acervos no YouTube, é fundamental para o debate. Esses registros visuais e orais da evolução dos aparatos sonoros narram histórias sobre os diferentes formatos de aparelhagem, como a origem dos Sonoros paraenses, ou os sons de bares, sons automotivos, entre outros.
Como a maioria das aparelhagens são empresas familiares passadas de geração em geração, suas histórias e arquivos permitem acompanhar a transformação dos equipamentos ao longo do tempo. Elas também refletem o caráter cosmopolita tanto do gênero musical quanto dos sistemas de som, que evoluem em resposta aos contextos culturais locais ao mesmo tempo em que dialogam com as tendências culturais globais. Como por exemplo a conta de Instagram @aparelhagemdasantigas que nos permite acompanhar a evolução do aparato e o podcast Pavulagem #4 brega, tecnobrega e melody, no qual é analisada a musicalidade e evolução de gêneros contemporâneos. Ou o documentário Brega SA que mostra como o circuito desenvolvido pela cadeia produtiva em torno das aparelhagens e do tecnobrega serve como referência significativa para a produção de bens culturais.
Este tópico em torno do uso da tecnologia sonora em certos contextos no sul global pode ser incluído em um debate mais amplo sobre a cultura periférica no Brasil, como analisado pelo pesquisador GG Albuquerque, por exemplo, no podcast Música Negra do Brasil: #7 Tecnologias do Beat, onde o pesquisador explora como as novas tecnologias digitais transformaram o cenário da música negra e periférica no Brasil a partir dos anos 2000, subvertendo tecnologias sônicas e redefinido a música eletrônica. Também através do blog O Volume Morto, no texto Por uma história da música eletrônica popular brasileira, o pesquisador aborda a evolução da música eletrônica no Brasil, destacando como essa cena musical se desenvolveu em diálogo com a cultura popular brasileira e a influência de diferentes gêneros musicais, como o funk carioca e o tecnobrega.
A perspectiva do aparato e a importância das tecnologias de som na cultura de periferia no Brasil, abrem espaço para outras análises em torno da criatividade, processos de produção e estéticas sonoras capazes de capturar e transformar as vivências cotidianas em som e ritmo.
Cultura de aparelhagem é parte da paisagem urbana
Alguns artistas têm contado essas histórias utilizando diferentes recursos, como Zek Picoteiro, que produziu um workshop onde emprega a narrativa comum entre DJs de aparelhagem — também presente no funk e no hip-hop — para relatar a evolução do brega. Recentemente, em parceria com o festival Psica, Zek, por meio do Instituto Regatão Amazônia, organizou em 2024 o primeiro festival de tecnobrega e aparelhagens.
Outro exemplo é Nay Jinknss, uma mulher negra, lésbica, nascida e criada em Ananindeua, no Pará. Em 2023, expôs no Arte Pará um vídeo que retrata o brega como uma ferramenta de empoderamento para os paraenses. No vídeo, além de uma trilha sonora composta por bregas marcantes, aparecem trabalhadores do Mercado Ver-o-Peso. A artista também busca debater a dança como um ritual de resistência.
Esse entendimento da cultura de aparelhagem como um recurso estético que permite os amazônidas explorarem suas auto-expressões, têm impulsionado o surgimento de projetos, como o Altar Sonoro. O projeto busca destacar a tradição das aparelhagens em uma plataforma que demonstra as diversas manifestações culturais que emergem a partir dessa prática na paisagem da cidade. O Altar Sonoro faz isso através principalmente do registro audiovisual do cotidiano, das minúcias da cultura que influenciam a vida e espacialidade local, e que muitas vezes são invisibilizadas.
A periferia é o centro
Cultura de aparelhagem é um dos meios pelo qual o amazônida cria, representa e circula sua própria cultura. Através da apropriação das tecnologias sonoras e coletivos, são construídas paisagens sônicas alternativas onde crocodilos e búfalos eletrônicos possibilitam a (re)construção da identidade (brasileira) a partir da periferia. O projeto Galera da Lage ou Gravando um disco de tecnobrega, produzido pela Companhia Amazônica de Filmes em 2013, é um curta-metragem documental que destaca a mobilização coletiva no processo de gravação de um disco de tecnobrega. Gaby Amarantos, protagonista do curta, atualmente é um dos maiores nomes na cena musical nacional, expandindo relações além do tecnobrega e reforçando a forte conexão do estilo de vida (por exemplo, pela estética, moda, gírias) do Norte do Brasil e do gênero com a cultura pop nacional, por exemplo.
Esse movimento promove o desenvolvimento de mercados culturais mais inclusivos e heterogêneos ao fornecer tecnologias emergentes para regiões periféricas, permitindo que elas estabeleçam seus próprios sistemas de identificação, produção, distribuição e disseminação cultural. Diferentemente de outros modelos culturais em que a periferia é dependente de centros urbanos para validação, a cultura de aparelhagem possibilita que os amazônidas sejam os agentes principais na definição de sua própria identidade cultural.
Oportunidades para Pesquisas Futuras:
- O aparato: como ele se configura na atualidade para além da sua evolução histórica unicamente.
- A dança: parte importante do ecossistema das aparelhagens e ainda pouco abordada em estudos, a dança não é apenas uma forma de entretenimento, mas também de expressão social e de conhecimento sônico corporificado.
- Tecnologia e inovação: aprofundar em como as aparelhagens utilizam de tecnologias (som, luz, veículos) e como estas inovações desafiam normas e criam novas técnicas e estéticas. Investigar como técnicas qualificadas, experiência e conhecimento com os quais os engenheiros, artistas e DJs ajustam o sistema de som para maximizar a intensidade da experiência audiovisual do público.
- Gênero e Música: análises críticas e historiográficas da relacionalidade e influência do tecnobrega com diferentes gêneros e tendências musicais ao longo dos anos, como por exemplo, o funk melody, eletro melody, forró eletrônico, arrocha.
- Fatores sociodemográficos: dados demográficos como raça, etnia, gênero, idade, renda, etc. Esses dados quantitativos auxiliam diretamente na realização análises mais segmentadas sobre as transformações positivas e negativas em termos socioculturais (fortalecimentos, apropriações, etc) e econômicos (modelos de negócios, subsistência, etc).
- Produção de ciência: como tudo isso relacionado ao ecossistema constituem modos de ser e epistemologias que não são contempladas pela produção conhecimento colonial e elitista predominante na academia.
- Metodologia, linguagem e narrativa: projetos e pesquisas que explorem o cruzamento de diferentes metodologias e materiais (e.g. quantitativa, acervos pessoais, entrevistas), linguagens (e.g. animação audiovisual, experimentação sonora) e narrativas (e.g. crítica, descritiva, ficcional, poética), para que contribuam com a geração de arquivo e memória das aparelhagens em diferentes meios.
Sobre as pesquisadoras
O repertório das autoras contribui significativamente para a análise interdisciplinar e multilinguagem da bibliografia comentada, permitindo uma abordagem crítica e ampla na busca por conhecimentos diversificados e acessíveis em torno do tema.
Natalia Figueredo é arquiteta e urbanista (Escola da Cidade – São Paulo), teórica cultural (Goldsmiths University of London), natural de Belém na Amazônia brasileira. Atualmente está fazendo doutorado em cultura e sociedade na Universidade de Barcelona.
Maria Luiza de Barros é arquiteta urbanista, teórica crítica e curadora, natural do Espírito Santo (Brasil). É idealizadora da vi.bra.tion, plataforma interdisciplinar de pesquisa para a perspectiva crítica da cidade, arquitetura, linguagem e som. Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo.